Asas à intuição

Por Fernando Ribeiro.

Envelheço. Tenho mais e mais dificuldade de sintonia com muitas das novas frequências. Entedio-me facilmente, mas também me divirto com o monstro ranzinza que a cada dia cresce mais e mais em mim. É um tanto quanto consciente dessas minhas limitações que ouço o novo trabalho de Júlio Dias, o EP Intuição. Claridades começam a despontar lentamente. Seria efeito daquele amarelo quase dourado, quase abundância, na arte da capa? Ou o sol revitalizante, ali tão firme e quase central? Sim, há também nebulosidades,  que bom que elas estejam ali, precisamos de contrastes, opostos, precisamos de todo o espectro das coisas. 

É com a mesma satisfação que vejo o solo seco da ilustração, das nossas amarguras e desilusões e admiro também os tufos verdes que insistem em brotar em meio à aridez, esses pequenos e constantes renascimentos. Quem sabe desses pequenos indícios encontremos o caminho para aquele possível Baú com o tesouro, para aquela grande floresta lá ao fundo? Precisamos desses nortes magnéticos, mesmo que distantes, inalcançáveis, imaginários. Quem sabe, de tanto querer, um dia a gente acorde sob a refrescância acolhedora daquelas grandes árvores milenares,  frondosas, que se divertem com nossas presenças e vicissitudes joviais. Mas, claro, existem as pedras.

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E que grandes esculturas de pedra ocupam o centro da capa!  Lembro-me das três esculturas de Edgard de Souzano no Instituto Inhotim, em Brumadinho (MG). As imagens de lá remetem a três posições, momentos ou movimentos diferentes:  um ser que ora se funde com o próprio corpo (ou brota de si mesmo), ora se enterra (ou nasce do solo), ora mescla-se com outro ser (ou emerge a partir de outro ser). Essas integrações, fusões ou evoluções parecem estar todas ali também naquela capa, naquela grande cabeça dura, ancestral e pétrea que deixa brotar uma árvore nova e verdinha, na grande mão que se preocupa em carregar a delicadeza da música. Claro que muitas outras imagens, mais distantes, são invocadas. A Mão do Mario Irarrázabal no Uruguai, o Cabeça Dinossauro dos Titãs, o Division Bell do Pink Floyd, embora aqui não se trate do metal, nem da divisão, remeta muito mais ao esforço de fusão, ao uno. E que curioso que a cabeça não tenha face – trata-se de alguém em processo de construção ou alguém em trajetória de desconstrução?

A música inicia. Começa pelo fim da peça. E que bom que, de cara, já chova, já se ouça trovões. É preciso reverenciar a natureza, sentir-se parte da tormenta, fluir. Que bom que seja um dedilhado lento e triste, que haja espaço para a delicadeza, para a reflexão tão em falta, para a voz suave e contida. Há uma certa culpa no ar e nos versos da música, um certo nó na garganta que se tenta amenizar, procura-se razões construtivas para o fim de um ciclo. Que bom que paire uma dúvida entre o que é dito pelos versos (como se fosse um “voe, meu amor") e o que é sussurrado pelas entrelinhas (“não me abandone, meu amor"). A sonoridade quer se mostrar esperançosa, mas não esconde também inseguranças. Há um tom de saudade que já bate à porta, um amor que sabe que vai perdurar mesmo sem estar junto, numa ligação atemporal e, talvez por isso mesmo, num laço ainda mais efetivo e perene. Quase ouço a melodia de Smile do Charles Chaplin e a letra adicionada mais tarde – um último consolo (ao outro, a si próprio), um esforço doído de sorriso diante da perda.

Mas mudemos de faixa, temos agora "Pressa". Um convite rápido, um quase alerta, um chamado ao despertar. O jogo de palavras subverte e questiona a mecânica acelerada da rotina do dia a dia. Por que não empregar essa ansiedade numa outra direção? Que tal se apressar para buscar o melhor de sua essência,  abrir os olhos para o que realmente interessa?  Parece estar tudo tão próximo, tão acessível, como a luz do amanhecer. Aparentemente uma dica de trajetória se delineia nessa segunda faixa do EP. Mas afinal, quem é que fala nesse trabalho? Seria algo pessoal, algum tom mais possessivo? Ou algo está sendo demonstrado? Parece que muitos gêneros são contemplados, tudo pode ser relativo, indefinido. Como se preferisse deixar a interrogação para o ouvinte. Por esse leque aberto, talvez a canção "Pronomes" seja a mais generosa e aberta, a que pode dialogar e encontrar ressonância com qualquer combinação e natureza de amores.

Há um instinto que ora se confessa, ora se contém. Paira um medo do passo seguinte, uma dúvida em se jogar ou não ao abismo amplo, imprevisível e profundo da entrega ao amor. Do conjunto, talvez seja a música mais carnal, cheio das sensações táteis, dos cheiros, do gosto de querer estar junto, de querer uma fuga a dois, daquele degrau a mais na relação que traz dúvida. Quase escancara o medo da incompletude quando se visualiza uma possibilidade de um caminho sem o outro. As sílabas entoadas de forma alongada no verso que fecha a canção deixam transparecer a angústia tortuosa do eu-lírico, aquele que se consome na dúvida entre o conforto de um amor limitado e a amplidão do amor maior.

Como num jogo de camadas paralelas, ligamos o amor carnal ao amor puro e sublime. É na penúltima faixa que a intuição de Júlio ganha asas e conjuga vários planos, convidando o ouvinte ao deleite dos instintos em um retorno aos jardins do Éden. Um passeio onírico, não há mais culpa nenhuma nesses campos do Senhor, há de se ter fé sim nas múltiplas dimensões infinitas do amor. Amor desnudo, utópico, sem barreiras, só doação, o ouvinte é abelha que sai visitando cada flor desse jardim, gênesis do amor primordial. A melodia que se repete e repete, minimalista e envolvente, parece nos reter e nos conduzir nesse vôo de encanto, talvez o melhor momento do trabalho. Mas, parecendo preferir o anti-clímax, o compositor opta, na última faixa do trabalho por lançar uma dúvida ao ouvinte, uma quase provocação, um quase enigma. Não, não há espaço para conforto, é preciso manter o movimento, a reflexão, o questionamento, a transformação.  Há um jogo de espelhos aqui. Há um dedo em riste, cobrando maturidade de alguém. Mas é possível entender tudo como uma cobrança própria também, algo mal resolvido que ainda dói e que está sendo contornado com um riso frouxo. Não, aqui não estamos no território do palhaço trágico, grandiloqüente, do Circo Sem Futuro do Cordel Encantado. O Universo aqui é outro, é o circo íntimo, talvez espelhado, talvez a dois.  Num certo sentido, a faixa final dialoga, quase briga, com “O Fim é uma Peça”, onde as coisas começaram. Se naquela temos a perspectiva de  uma postura sábia, mas passiva e contemplativa, aqui a persona é reativa, provocadora, aquela que convida, instiga a “ir além”.  Em comum, essas visões miram o(s) relacionamento(s), preferindo sempre os tons contidos, o andamento lento, sabem que é preciso tempo e cuidado para que a palavra (e o som) chegue ao destino almejado.

Romântico, suave, poético, reflexivo, preocupado em transcender, em ver muito além daquilo que se apresenta em sua forma mais direta, material, carnal. Concisão. Ora papo reto, ora entrelinhas. Uma distração dos ouvidos e a banda passou, a música se foi. Um escutar mais atento, com todos os sentidos e aí sim, a festa se faz. 

Quando o silêncio se refaz, depois da audição do EP,  há algo diferente em mim.  Junto à inquietude, há algo de muito conciliador nesse trabalho, quem sabe semelhante ao que percebi muito brevemente no artista. Une uma pulsão muito jovial e intensa a uma curiosidade  (quase) respeitosa, (quase) cuidadosa,  pelo mistério antigo das questões que nos movem e nos unem. De certa forma, sinto-me menos estranho, menos só, nesse mesmo caminho. Cinco segundos de uma satisfação quase sorridente. Mesmo que temporária, a ilusão é reconfortante. Sinto-me menos velho. Rejuvenesço.

 

* Arte da capa EP Intuição por João Alberto Redondo