"Caí no abismo. Vivo nem mundo tão curioso, tão estranho. Do sonho que foi a minha vida, este é o pesadelo"
(Camille Claudel)*
Imergida no abismo, a escultura Camille Claudel (1864-1943) – mulher de grande talento e sensibilidade – se viu artisticamente amordaçada por uma sociedade patriarcal e machista no século XIX e, ainda, sufocada pelo seu mentor e amante Auguste Rodin. Segundo a historiadora Monique Laurent, ex-diretora do Museu Rodin, em Paris, o escultor "tinha medo de Camille. Sua inteligência e talento fazia dele uma artista que poderia suplantá-lo".
Sua vida foi marcada por relações conflituosas, tanto familiares quanto com o próprio escultor Rodin, num relacionamento conturbado durante quinze anos. Vivenciou frustações em vários níveis, principalmente ao ver seus sonhos e talento serem amputados.
Escultora francesa Camille Claudel (1864-1943)
As dores e os intensos sofrimentos emocionais foram transmutados de forma potente e expressiva em suas obras. O corpo e os gestos falavam de sentimentos, dos sentimentos da mulher pela percepção feminina. As figuras míticas como ninfas, sereias, deusas e heroínas, presença contastes no conjunto de obra da artista, revelavam essas narrativas arcaicas (representações do inconsciente coletivo) e, ao mesmo tempo, reviviam-os no processo de criação e, automaticamente, expressos nas esculturas.
Segundo o psicanalista suiço Carl Gustav Jung (1875-1961), é durante o processo de criação, em estado alterado de consciência, que essas imagens arquetípicas são acessadas, onde há uma comunicação simbólica muito intensa. "O processo criativo consiste (até nos é dado segui-lo) numa ativação inconsciente do arquétipo e numa elaboração e formalização na obra acabada. De certo modo, a formação da imagem primordial é uma transcrição para a linguagem do presente pelo artista, dando a cada um a possibilidade de encontrar o acesso às fontes mais profundas da vida que, de outro modo, lhe seria negado".
Obra "O Beijo" (1888-1889), escultura de Auguste Rodin
Ao colocarmos lado a lado às obras "O Beijo" (1888-1889), de Auguste Rodin, e "Sakountala"(1888) – premiada pela Sociedade dos Artistas Franceses -, de Camille Claudel, bem como "Femme Acroupie", titulada por ambos artistas, porém, esculturas produzidas em períodos distintos, por exemplo, fica evidente essa representação do feminino. ??????
Em "O Beijo" – inspirado no amor proibido de Francesca e Paolo, personagens que aparecem no clássica obra literária "A Divina Comédia", do poeta Dante Alighieri (1265-1321), a figura masculina é quem domina e "detém o poder do desejo sobre a mulher". Ao observar "Femme Acrroupie" (1881-1882), também de Rodin, é perceptível esse distanciamento representativo do feminino, e, inclusive, do nu. Na escultura, a mulher está exposta, "convidativa ao olhar, ao desejo e, por conseguinte, à posse da mulher como objeto", como aponta Ana Cristina Costa em "Camille Claudel na Historiografia da Arte: uma visão à luz dos estudos feministas".
Obra "Sakountala" (1888), escultura de Camille Claudel.
Já em "Sakountala", obra de Claudel, baseada em um épico indiano que narra o amor que causa destruição e tristeza, o feminino é o centro da narrativa. O homem é que se ajoelha diante da mulher, ali há uma reciprocidade do desejo. Esse corpo feminino, esculpido por Claudel, não retrata a mulher como um mero objeto de prazer masculino. Há uma dramaticidade e uma visceralidade na sua forma de expressar-se, algo que realmente impacta.
Em relação "Femme Acrroupie" (1884-1885), Claudel expressa através da obra uma mulher que esconde, mas no sentido de negar ser olhada como objeto. Seus gestos denotam uma perturbação e desespero, ao qual protege a si mesma, fechando-se. Ou seja, a figura feminina "não está se acuando, ela está, na realidade, impondo-se, reagindo à possibilidade de uma violação", que pode ser, por exemplo, uma negação à posse, ao deleite do olhar fetichista do observador.
Obra "Femme Acrroupie"(1881-1882) , do escultor Auguste Rodin.
Obra "Femme Acrroupie" (1884-1885), da escultora Camille Claudel.
Ao longo do século XIX, a questão do "prazer do olhar" apresentava uma relação de poder ao qual era "culturalmente legetimado e codificado" o modo de ver e nas representações do feminino nas artes pela perspectiva masculina. No entanto, ao homem era atribuída "função de 'olhar ativo' e a mulher a de objeto do olhar", como aponta Costa.
O reconhecimento artístico de uma mulher nesse período, principalmente como escultora, ofício considerado masculino, numa sociedade burguesa e machista em que os homens dominavam tanto a vida pública quanto a política, era algo realmente complicado. Pois o termo gênero era muito bem estruturado; a visão que se tinha da mulher era de um ser incapaz intelectualmente que nunca alcançaria à condição de gênio.
Segundo Luciana Gruppelli Loponte, em seu artigo titulado "Sexualidades visuais e poder: pedagogias visuais femininas" (recomendo a leitura), as mulheres artistas eram "sempre apêndices de alguém: filha de, esposa ou amante de…". Suas obras precisavam ser "justificadas a partir da sua relação com outros" [o homem]. Como crianças que precisam ser conduzidas, as mulheres artistas e suas produções são sempre colocadas à prova, e sua capacidade de criação além dos limites da maternidade e reprodução é regularmente questionada, legitimando a arte como produto da criatividade e da genialidade masculina". Portanto, "se as mulheres fossem abençoadas com uma sensibilidade refinada e uma percepção estética desenvolvida, isto deveria ser expressado nas atividades adequadas dos afazeres domésticos. O bordado, a montagem de álbuns e a pintura de aquarelas, nada muito difícil e ambicioso, nada que as afastasse de seus deveres primários de esposas e mães".
Mas Camille Claudel era uma mulher/artista que fugia dos padrões sociais. Em seu ofício, buscava por seu próprio estilo, com o tempo, distanciou-se ainda mais da de Rodin, assim, foi libertando-se do "domínio do mestre". Na sua fase mais produtiva, criou obras tais como "A Valsa" (1892), "Clotho' (1893), "A Idade Madura" (1893), "Perseu e a Medusa" (1902), e "Níobe Ferida" (1905), sendo o seu último ano de produção artística.
Em 1913, poucos dias após a morte de seu pai e protetor, Claudel é internada à força pela família no hospital psiquiátrico de Ville-Evrard, perto de Paris. Em decorrência da Primeira Guerra Mundial, é transferida para o hospital psiquiátrico de Montdevergues, administrados por freiras, onde acabou passando os últimos 30 anos, vindo a morrer em 1943, aos 79 anos.
Mais sobre Camille Claudel
Há dois filmes biográficos sobre a artista francesa que recomendo: "Camille Claudel" (1988), dirigido pelo cineasta Bruno Nuytten, em que a história é baseado na obra de Reine-Marie Paris, sua sobrinha-neta, estrelada pela atriz Iabelly Adjani; o outro, "Camille Claudel 1915" (2013), de Bruno Dumont, estrelada pela Juliete Bnoche, inspira-se livremente em correspondências e nos prontuários médicos, apresentando um retrato intimista do ano de 1915 na vida da artista. Esse último, pode ser conferido a nossa crítica aqui. Além desses, há também um documentário titulado "Claudel, un nouveau regard", da ditetora francesa Florence Bonnier, mas aborda sobre os irmão Claudel, igualmente interessante.