Entre os anos de 1983 e 1985, o cineasta brasileiro Leon Hirszman, em parceria com a renomada psicanalista junguiana Nise da Silveira (1905-1999) – que revolucionou os tratamentos psiquiátricos dos anos 40 no Brasil, antes realizado de forma agressiva (eletrochoque, lobotomia, confinamento, etc.) – produziu uma trilogia muito interessante.
Baseada no livro de Nise, “Imagens do Inconsciente”, também titula a trilogia, é composta pelos filmes “Em Busca do Espaço Cotidiano”, “No Reino das Mães” e “A Barca do Sol”. Com narração em voz off, pela atriz e locutora de rádio da época, Vanda Lacerda, encarnando a psicanalista, conduz o espectador em sua narrativa bem articulada e didática, de forma à prender a sua atenção.
“No Reino das Mães” aborda a história da paciente Adelina Gomes (1916-1984), uma mulher que vivia no campo que, na juventude, se apaixona por um homem, mas, no entanto, sua mãe não aceita o relacionamento e a reprime veemente. Submissa, passa a se retrair cada vez mais até o dia que ocorre um surto psicótico e acaba estrangulando a gata de estimação da família, da qual tinha um carinho muito grande pelo animal.
Segundo a psicologia analítica junguiana, esse episódio levou a perda da função feminina – sua energia e aspectos femininos -, algo fundamental para o desenvolvimento psicológico, comprometendo, assim, a configuração natural de identidade que permitia a Adelina vivenciar sua própria natureza, ser mulher.
O ato de estrangular a gata, segundo os estudos de Nise, com base na psicologia analítica fundada pelo psiquiatra e psicoterapeuta suíço, Carl Gustav Jung, representa, simbolicamente, matar seus próprios instintos, o seu feminino.
Ao negar-se como mulher, Adelina Gomes, que já vinha se retraindo em si antes do surto, com o episódio, mergulhou em regiões bem profundas do inconsciente coletivo, na qual teve contato com o “Reino das Mães”, definido pelo alemão Johan Wolfgang von Goethe na obra “Fausto”, onde acabou “prisioneira” das mães más que povoa esse reino. Um lugar em que se encontram os registros inconscientes das mães coletivas até os mais primitivos, daquelas que já viveram.
Após o episódio do estrangulamento, é diagnosticada com esquizofrenia e internada em 1937, aos 21 anos, no Centro Psiquiátrico D. Pedro II, no Rio de Janeiro. Após quase dez anos de internação, sem nenhuma melhora, passa a frequentar o Ateliê de Pintura e Modelagem, criado por Nise da Silveira, em 1946, que seria mais tarde, o Museu de Imagens do Inconsciente.
É nesse ambiente que ela vivencia o processo mitológico, da qual emergem do inconsciente as imagens arquetípicas femininas (mães arcaicas, a deusa grega Hécate acompanhada da figura do cão, a ninfa grega Dafne – Mito de Dafne que identifica uma relação mãe e filha muito estreita, de submissão -, deusa grega Deméter e a Virgem Maria), expressas através de suas esculturas e pinturas criando uma atmosfera onírica.
Ao longo desse processo de evolução, de altos e baixos, detectado por meio da análise dos desenhos da paciente, nota-se uma estruturação das imagens pintadas com a realidade. Dado momento, a figura do gato aparece com mais força, no inicio como mulher metamorfoseada de gato, depois cada qual ocupando seu devido espaço. A presença da figura mãe e filha, e homem e mulher também surgem em suas pinturas, que conectam com as mudanças psíquicas que vai ocorrendo com Adelina.
Nesse momento, as figuras humanas não apresentam braços, denotando ainda a presença dos temores que rondam a paciente. “A fragmentação da consciência correspondendo a uma imediata fragmentação do corpo humano”. Após algum tempo, essas imagens passam ser representadas de forma completa. Durante mais de 40 anos, as artes de Adelina tem expressado suas experiências mais íntimas.
Nesse processo, antes vista como uma pessoa agressiva, negativista e considerada perigosa, tornou-se mais dócil, centrada em suas atividades. Até a sua morte, Adelina produziu 17.500 obras, entre o abstracionismo e a figuração, que podem ser vistas no Museu de Imagens do Inconsciente, fundado em 1952, no Rio de Janeiro, pela psicanalista.
O pensamento psicanalítico, principalmente em relação ao conceito de inconsciente, teve um papel fundamental na aproximação entre a arte, a ciência e os estudos voltados aos transtornos mentais.